Crítica | Um Limite Entre Nós
Logo nos primeiros segundos de Um Limite Entre Nós, somos apresentados ao forte temperamento de Troy Marxson através de um rico diálogo desatado do foco dramático do filme, proferido com segurança e de maneira orgânica pelo gênio Denzel Washington. O funcionamento da obra cabe mais ao fortíssimo elenco do que propriamente à direção (também de Washington), justamente pela difícil tarefa de atribuir naturalidade á monólogos e diálogos rotineiros, que muitas vezes servem para estabelecer seus protagonistas. E é isso que torna Um Limite Entre Nós tão especial.
Acompanhado por Viola Davis, Stephen Henderson, Jovan Adepo, Russel Hornsby e Mykelti Williamsom, Denzel Washington dá vida e (muita) força a um homem amargurado pelo passado. Um ser desprezível que ainda consegue passar graça e simpatia graças à atuação de Washington. Não há muito o que ser dito quanto ao enredo, Um Limite Entre Nós fala sobre falhas, caráter e amor, e por mais que ocorra um ponto central climático no segundo ato, sua intenção é retratar justamente o cotidiano destes 3 elementos.
Ainda que seu protagonista dependa dos personagens secundários para crescer em cena, a figura central da obra é Washington. Encarregado de adaptar para os cinemas o texto de August Wilson que tanto interpretou no teatro ao lado de praticamente o mesmo elenco, sua competência fica mais evidente quando o próprio está em cena. Transitar entre pouquíssimos cenários em longas cenas guiadas por longos diálogos, e ainda assim cativar toda atenção para o trabalho de elenco com naturalidade, é uma tarefa muito bem realizada e ousada, chegando a ofuscar completamente a sensação de estarmos simplesmente assistindo a um filme (pelo menos na maior parte da projeção). Porém, tal ousadia é perfeitamente efetiva graças a Henderson - magnificamente sutil no papel de Bono -, Hornsby – este principalmente em uma cena onde responde seu pai com todo o poder rancoroso que guarda, ao simplesmente pedir dinheiro emprestado -, e Viola Davis.
Enquanto Washington se mostra energeticamente imponente e extraordinariamente implosivo no difícil papel do protagonista, seja ao valorizar sua teimosia com Bono em anos de amizade ou em revelar toda a sua amargura do passado em momentos de crueldade com o filho mais novo (Adepo), o ator consegue se superar ao contracenar com uma das maiores atrizes da atualidade. E aqui o mérito vai justamente para o apoio de Viola Davis, que, esplendidamente, quebra o orgulho de Troy em milhares de pedaços. Cada momento de Davis no filme é puro brilhantismo, tanto em ocasiões secundárias - o modo desaprovado em que olha para o marido ao fundo quando este revela seus defeitos, por exemplo -, quanto em seu grande ápice, em uma cena eternizada por sua bela e explosiva atuação ao clímax do filme.
Se há um potencial para explorar os problemas raciais da década de 50 aqui, Washington se preocupa em tratar isso como pano de fundo. Não há uma cena onde o preconceito é destacado claramente, mas é justificável e interessante como o diretor aborda o racismo como base para o desenvolvimento de seus personagens. Isso faz parte deles. Aliás, muito do rancor de Troy e do drama de Rose vêm justamente dessa grande injustiça. Não há realmente espaço para tratar o preconceito como mais uma dor a ser claramente combatida no filme.
A imperfeição de Um Limite Entre Nós se deve à tarefa de adaptar o formato da obra. Sim, Washington é extremamente eficiente em depositar a naturalidade de diálogos longos na competência de seu elenco, até mesmo em certos momentos dramáticos que tendem a cair para o teatral (a explosão de Davis, por exemplo, se encaixa muito bem cinematograficamente), mas é aqui onde reside o ponto fora da curva. Enquanto Washington explora o drama de Troy com silêncios, criando um interessante contraste com a personalidade do personagem (note sua bela atuação na cena em que Troy fala sobre seu pai), o mesmo não pode ser dito sobre breves momentos da atuação de Williamson no papel do mentalmente perturbado irmão. Williamson é um ator eficiente (lembram do “Bubba” em Forrest Gump?), mas suas escolhas para a interpretação de Gabe funcionam melhor para o formato teatral. Há bons momentos de seu personagem, como sua primeira aparição (onde também serve de apoio para a grandeza de Washington em cena) ou quando, sem nada dizer, é alimentado por Troy, mas há momentos que soam inconvenientes, como durante uma discussão familiar de alto potencial dramático e, principalmente, aos minutos finais do filme. Se por um lado Williamson se destoa completa e propositalmente do clima do filme em tal momento, a cena propriamente dita é piegas por si só. Explorar este defeito seria revelar pontos cruciais da trama, e também injusto, pois ainda que soe brega visualmente, Viola Davis e Adepo salvam o final com mais dois grandes momentos de atuação. A primeira emociona em um belo discurso sobre amor e respeito familiar, passando por cima de qualquer orgulho que pudesse ter. E devo destacar a qualidade do jovem Adepo ao cantar a canção de Blue, revelando fisicamente o rancor que lhe corroía por dentro. Uma cena belíssima.
Um Limite Entre Nós é um filme sobre um homem que se coloca como cerca para se afastar de quem o ama e, mesmo sabendo disso, não pretende deixar sua zona de conforto. Troy Marxson é a maior atuação da carreira de Denzel Washington, mas não seu melhor trabalho como diretor. Ainda assim, seus pequenos problemas são absolutamente ofuscados pelo excelente trabalho do elenco em cena.
NOTA: 4,5/5