Crítica | Doutor Estranho
Em 2008 a Marvel acertou em cheio ao lançar o primeiro filme do Homem de Ferro, protagonizado por um grande ator que havia acabado de retornar aos holofotes depois de polêmicas que não merecem mais citações. Um universo próprio e compartilhado foi se formando ao longo dos anos, entre erros e acertos, e agora o estúdio aposta em Doutor Estranho, o filme mais diferente da Marvel, mas que ainda se garante na já conhecida fórmula da empresa cinematográfica.
Benedict Cumberbatch encarna Stephen Strange, um médico brilhante e arrogante que após sofrer um grave acidente de carro, perde o privilégio de exercer sua amada profissão. Ao buscar uma possível cura, adentra um mundo completamente diferente de tudo que já conheceu, se vendo obrigado a proteger muito mais do que já viu com seus próprios olhos.
Dirigido por Scott Derrickson, um conhecido do gênero de horror (Livrai-nos do Mal, O Exorcismo de Emily Rose) e uma escolha peculiar, Doutor Estranho tem muito valor e se destaca no universo cinematográfico da Marvel. A opção pela escolha do diretor sempre soou arriscada, pois além de nunca ter se envolvido em produções meramente semelhantes, não possuía um nome à altura do poderoso elenco do longa. Porém, há uma singularidade em seu estilo estético e sóbrio que demonstra potencial para a produção. E por mais que sua direção não se sobressaia entre grandiosos elementos positivos, é justamente seu estilo que casa tão bem com Doutor Estranho.
A produção já possui seus trunfos antes mesmo de ser assistida. Há um charme extravagante em 2 atores igualmente exóticos: Cumberbatch e Tilda Swinton – sempre excepcional em cada filme que faz. E claro, tão importante quanto: Marvel. O estúdio tem uma força própria e procura corrigir erros cometidos em produções anteriores. Há uma experiência inegável de 8 longos anos. Mas é claro que tais elementos não seriam suficientes para salvar um filme, e sim para já soar interessante por si só. Mas quem disse que Doutor Estranho precisa ser salvo?
A simplicidade do roteiro causa contrastes interessantes com a complexidade visual do filme. Se Thor nunca soube explorar seus trunfos asgardianos com apreciação de efeitos e localidades fantásticas, Doutor Estranho abusa perfeitamente de seu potencial visualmente fantasioso. Em uma já esperada amálgama visual de Matrix e A Origem, o filme consegue criar o seu próprio estilo adicionando tons psicodélicos e extraordinários às dobras de prédios e realidades. Doutor Estranho é visualmente lindo e chocante em um sentido excêntrico da palavra. É algo que os olhos merecem assistir em uma tela de cinema. Um casamento perfeito com a eficiente fotografia caleidoscópica de Ben Davis, já conhecido nos filmes do estúdio. E vale lembrar que é exatamente em viagens entre o multiverso onde Scott Derrickson deposita sua experiência em terror. E por mais que houvesse um grande potencial de aprofundamento narrativo na história, é compreensível que a produção exija que o filme siga a fórmula Marvel de fazer cinema. Doutor Estranho precisa se encaixar e fazer parte do universo cinematográfico da empresa, e por isso Derrickson não desenvolve um filme tão arriscado quanto as duas superproduções que citei anteriormente, ainda que seja um dos mais arriscados do ponto de vista dramático. Transitando entre ação e um humor altamente eficaz com um pano de fundo extraordinariamente vivo, o maior impacto de Doutor Estranho é visual, uma vez que o potencial de criar uma verdadeira tensão é quebrado com momentos cômicos. Uma questão habitual da Marvel, muito mais responsável por isso do que o próprio filme. Afinal, a empresa sempre seguiu esta fórmula, desde o começo, e nunca prometeu mudanças quanto a isso. E é por isso que a ausência de profundidade narrativa não se torna um defeito, nem de perto. O real problema dessa fórmula é o desenvolvimento antagônico dos filmes, e em Doutor Estranho não é diferente. Mads Mikkelsen é um ator eficiente e sempre interessante em papéis vilanescos, mas mesmo que seja o responsável pelo maior impacto dramático do filme, sua imponência exigida é falha e o vilão nunca passa o devido receio que devemos sentir pelos personagens. Mikkelsen faz o que pode com sua ótima execução em discursos, mas é traído por seu desenvolvimento narrativo.
Nos momentos mais complexos onde o CGI tinha tudo para parecer genérico, é brilhante. O momento em que Strange conhece o Olho de Agamoto e aprende seu feitiço do tempo é magnífico, em uma cena de plano sem corte com uma maçã que se torna uma das melhores construções do filme. Mas sua maior fonte de luz é Benedict Cumberbatch. Desde sempre a melhor escolha, o ator desenvolve o personagem título com maestria e perfeição, adicionando um nível ácido e urgente que vai fazer brilhar os olhos de qualquer fã dos quadrinhos. A missão de criar empatia com um protagonista arrogante e egocêntrico é extremamente complicada e o ator tira isso de letra, se tornando a única e definitiva versão do Doutor Estranho nos cinemas. Algo muito parecido com o que Donwney Jr fez com Homem de Ferro em 2008, em termos de objetividade. Tilda Swinton dá uma excentricidade pitoresca à Anciã, sendo uma personagem tão importante quanto o protagonista. Sua atuação é imponente e exerce a função de apresentar Stephen Strange e o expectador a um novo mundo. Rachel McAdams tem uma importância menor e serve como ponte para muitas das cenas cômicas do filme. Mesmo com o pouco tempo de tela, seu grande talento desenvolve uma química muito eficiente com Cumberbatch, revelando uma relação mais complexa e orgânica do que o habitual nos filmes do gênero, e isso é ótimo.
A trilha sonora também tem sua importância ao contribuir para a estranheza operativa das cenas de ação do filme. Melodias cintilantes que mesclam elementos de horror com cantos épicos de catedral beiram a perfeição. Ainda que não sejam músicas marcantes (quantas músicas da Marvel você realmente lembra?).
Doutor Estranho funciona sozinho e ainda consegue se conectar com os outros filmes do universo de forma contundente. As referências, desta vez, são realmente easter-eggs. Tratam-se de figuras como a torre dos Vingadores ao fundo e uma breve citação às joias do infinito – algo que ainda estar por ser consolidado nos filmes. Diferente de produções como o ótimo Capitão América 3: Guerra Civil, Doutor Estranho não precisa se prender em amarrar tudo, e isso dá uma liberdade bem aproveitada a Scott Derrickson para contar mais uma origem dentro do universo, sem que fique repetitivo e cansativo. Um excelente trabalho que merece seu lugar entre os 5 melhores do estúdio. E mesmo que siga a clássica fórmula da Marvel, o filme tem seu valor e estilo próprio, seja estético ou narrativo, e por isso se destaca de forma energética. E vale lembrar que há 2 cenas pós-créditos igualmente importantes!