Crítica | Manchester À Beira-Mar
Há algo sutilmente singular em produções que se definem por narrar uma passagem da vida, ao invés de conduzir uma história com início, meio e fim. E por mais que Manchester à Beira-Mar cumpra um ponto de partida em sua narrativa, o filme usa o próprio espectador como ponto de vista em uma conturbada passagem na vida de seus protagonistas.
Casey Affleck interpreta Lee Chandler, um homem depressivo e traumatizado que recebe a notícia da morte de seu irmão. Ao retornar para sua antiga cidade, se vê na responsabilidade repentina de cuidar de seu sobrinho menor de idade.
O diretor Kenneth Lonergan faz um belo trabalho ao guiar sua história de forma prudente, sem se atar a complexidades de arcos dramáticos. Sua eficiência no cargo se valoriza, inicialmente, ao não tratar a morte do irmão de Lee com grande impacto. A notícia é dada antes dos primeiros vinte minutos de tela, sem ao menos ter apresentado Joe (Kyle Chandler) fisicamente. Fundamental para que o filme não funcione como uma tortura emocional. Este impacto não é exclusivamente dramático do ponto de vista de tom, mas de desenvolvimento de história. Apresentar Joe através de flashbacks depois de sua morte proporciona espaço para explorar o grande drama da vida de Lee, sem passar a sensação de “mais um soco no estômago”. Pontos como este são fundamentais em Manchester à Beira-Mar, pois o filme ainda cria brechas para um humor sutil e pontual, executados com a mais bela singeleza por Affleck e o (super) promissor Lucas Hedges.
A escolha de Lonergan por uma narrativa que se intercala entre presente e passado colabora a conceder leveza ao filme. E por mais complexo que possa soar sem apelar para um artifício previsível de transição de tempo, a diferença entre passado e presente fica evidente no personagem de Affleck. Nos momentos mais inveterados do passado, além de um figurino que exerce a função de dar luz a vida de Lee, com roupas de cores fortes e vivas, o personagem era dono de uma personalidade otimista e espirituosa. Ambos artifícios são rechaçados no presente e a não-linearidade da narrativa surpreende ao chegar no clímax do filme. O pico dramático de Manchester é explorado com maestria em um momento absolutamente imprevisível do ponto de vista de desenvolvimento de cena, sucedendo em um flashback dentro de um flashback. Com isso, a intensa mágoa de Lee se justifica de forma poderosa e chocante, tal como a atuação de Casey Affleck. Note como o ator constrói seu personagem com imprevisibilidade em suas ações e gestos de melancolia entre suas palavras – é habitual como Lee leva a mão a cabeça como sinal de impaciência, por exemplo. Detalhes pequenos e simples que dão um suspiro de vida própria ao protagonista.
O filme guia seus extremismos dramáticos com ausência de trilha sonora diegética (sons ambientes) para evidenciar o vazio e a sensação de ruína na cabeça de Lee. É como se uma bomba tivesse estourado ao seu lado, lhe deixando surdo por alguns minutos. Ao mesmo tempo, Lonergan opta por reforçar a melancolia com músicas clássicas. Aliás, é exatamente este tipo de melodia que compõe a bela trilha sonora de Manchester À Beira Mar, exercendo um tom de fragilidade e refinação a narrativa.
Os melhores momentos do filme envolvem Lee e Patrick (Hedges), em uma relação verdadeira e complexa entre um deprimido e um adolescente que, de uma forma branda e bela, busca não ser abalado pela morte de seu pai, dando continuidade a seus hobbies de modo otimista. Neste aspecto, Patrick se torna um contraste com o personagem de Affleck. Enquanto o filme faz questão de evidenciar a visão pura que o jovem tem da vida, tocando com sua banda, tentando a primeira vez com sua namorada e se tornando um atleta, Lee evita conhecer pessoas novas e demonstra que, para ele, sua vida é só uma curta passagem, que quanto antes acabar, melhor. Porém, Lonergan evita superficialismo em sua simplicidade e, com o tempo, Lee e Patrick precisam um do outro como nunca.
Sem cair no óbvio, há doces momentos dramáticos de Patrick, incluindo um inusitado ápice onde o personagem finalmente evidencia o verdadeiro peso que estava sentindo, em uma cena tocante do novato Lucas Hedges. O ator faz lembrar o trabalho de Matt Damon no início de sua carreira, principalmente em Gênio Indomável. E por mais que a maior parte do longa se trate de grandes passagens dramáticas, o humor surge de maneira inusitada e espontânea. Talvez por isso tais momentos sejam também tocantes em cenas onde o contraponto de Lee e Patrick ficam comicamente evidentes. O humor não é genérico e, muito menos, forçado, pois o filme justamente não se trata de uma jornada, os personagens não mudam drasticamente, apenas evidenciam lapsos de otimismo, sem haver descaracterização.
Então chegamos a Michelle Williams. Uma atriz que faz por merecer muito mais créditos do que lhe dão, e em Manchster não é diferente. A americana é absolutamente brilhante com seus pouco menos de 10 minutos de tela. Randi é desenvolvida com certa nuance espiritual. A atriz consegue facilmente revelar quando está evitando passar uma sensação e quando realmente está sentindo algo que a corrói por dentro. Uma terceira indicação ao Oscar será bem-vinda e justificada em um momento em que contracena com Affleck no presente. Apenas seu pouco tempo de tela pode ser usado como desculpa para a não indicação. Ah, e claro, Casey já garantiu a sua aqui.
Manchester À Beira Mar é um excelente e funcional drama, que graças a sutileza de Lonergan em alternar entre tom otimista e dramático, principalmente nas transições entre passado e presente, e aos belos momentos pontuais de humor, o filme não se torna emocionalmente pesado. Por isso fique aliviado, pois Manchester não tem a intenção de te afogar em mágoas do começo ao fim e muito menos em fazer com que saia do cinema sem esperança na vida. A sensação que esta prestigiosa reflexão da melancolia deixa é que, na arte, há sempre um espaço para admiração.