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Crítica | Meu Rei


É fascinante como o cinema europeu se destaca de Hollywood das maneiras mais sutis e humanas. Tanto o seguro e contundente alemão quanto a belíssima arte francesa nas telonas. Meu Rei é mais um corajoso exemplo de que obras primas ainda são presentes no cinema moderno. E nesta obra, a eficiência se deve a uma excelente direção de Maïwen (sempre segura, como em Polissia) e, tão essencial quanto, as grandiosas atuações de Vincent Cassel (Cisne Negro) e Emmanuelle Bercot – ganhadora do prêmio de melhor atriz em Cannes por este papel.

O filme conta a simples história de amor e autodestruição de um casal durante os anos. Cassel vive Giorgio, um homem rico e boêmio que se apaixona por Tony (Bercot), uma mulher aparentemente ingênua. O casal caminha da felicidade ao drama quando Giorgio se revela um homem possessivo e desequilibrado ao longo da trama.

Recentemente escrevi a crítica para um filme italiano (Lembranças de um Amor Eterno) que falhou, principalmente, em apresentar um drama romântico de duas horas com excessivo peso melodramático. Deixo claro que filmes melancolicamente pesados não são sinônimos de ineficientes, afinal, obras como o emocionante Amour (2012) provam isso. Porém, Maïwen toca Meu Rei como uma melodia de 120 minutos, onde versos de drama e de um humor muito bem dosado se alternam moderadamente. Por mais tocante e duro que seja acompanhar a autodestruição do relacionamento e a insistência em um amor que se nega a morrer, o filme trabalha o otimismo com o inconfundível humor do cinema europeu. A verdade é que a narrativa tinha tudo para soar incoerente e desarmônica, mas as transições de humor são guiadas de forma magistral, tanto pela direção, quanto por grandes atuações de seus protagonistas. Por mais redundante que seja dizer isso, a assimetria de humor do filme é um perfeito retrato de um relacionamento disfuncional, e é aqui onde o realismo se estrutura.

É interessantíssimo como Maïwen opta por uma narrativa não linear do ponto de vista de Tony. O filme começa com a personagem iniciando uma fisioterapia após um rompimento no ligamento do joelho – igualmente interessante por não revelar graficamente o momento do acidente. Em seguida, sem apelar para um artifício óbvio de flashback, o filme volta no tempo para contar a origem do casal. E assim continua, alternando entre o passado e o presente, nas sessões de fisioterapia. Curiosamente, o paralelo da narrativa oferece um elemento de suspense ao fazer questionar o motivo da situação em que Tony se encontra emocionalmente no presente. O que de tão ruim pode ter acontecido com aquele casal tão apaixonado? A vida como ela é. Uma resposta piegas, mas absolutamente funcional aqui. Entretanto, a verdadeira intenção de Maïwen ao traçar o paralelismo narrativo é fazer com que ambas as fases se encontrem para fazer sentido no final. É ainda atrativo e glamoroso como a fase que se inicia tão dramática (a fisioterapia no presente) se torna gradativamente otimista ao modo em que Tony faz novas amizades durante o tratamento, enquanto a fase que começa feliz (a origem do casal) se desconstrói ao caminhar para este presente.

Por mais que a direção de Maïwen seja primorosa, Meu Rei não seria um filme tão brilhante não fosse pelas já citadas atuações. Vincent Cassel mais uma vez mostra seu valor em uma atuação magnífica. A construção da complexidade de seu personagem que precisa se manter unidimensional durante toda a trama é guiada por belos momentos de humor e cinismo. O cinema europeu tende a desenvolver grandes cenas de humor através de diálogos inspirados com um timing cômico certeiro, e se Cassel se mostra um especialista aqui, seu talento é elevado ao revelar os egoísmos e desequilíbrios de Giorgio. Ainda que tenhamos desprezo nestes momentos, é altamente tocante a sinceridade que o ator entrega em seus olhares lacrimejados.

Igualmente primorosa, mas ainda mais brilhante, é a atuação de Emmanuelle Bercot. Logo ao início do filme, há um momento onde lhe é perguntado o que realmente aconteceu. Se a terapeuta se referia ao acidente físico, Tony mergulha em lágrimas e, em menos de 5 minutos, Bercot justifica sua premiação em Cannes. Sua transição emocional é desenvolvida por um figurino de cores fortes (inclusive o vermelho da paixão no início do relacionamento) a cores frias e sóbrias, mas principalmente a detalhes preciosos de sua atuação. Do ponto de vista físico, há também muita verdade em seus olhares e maneirismos. Preste atenção no primeiro momento em que Giorgio sugere que o casal tenha um filho, Bercot demonstra muito bem a insegurança em sua resposta. Mas a francesa se destaca principalmente ao explorar os extremismos dramáticos de sua personagem. Há grandiosos momentos de fúria, há grandiosos momentos de dor. E se o personagem de Cassel se recusa a evoluir (parte da construção de sua personalidade), Tony é personificação da força de vontade. Aliás, a atriz merece aplausos de pé na cena em que está embriagada durante um almoço e joga verdades na cara do marido.

O segmento de dois pontos de vista da mesma relação funciona para explorar os defeitos e qualidades que um enxerga no outro. Por mais que Tony seja a representação da dor, muitas vezes causada de forma inconsciente por Giorgio para aprofundar seu egoísmo, a personagem também comete erros. Meu Rei não se propõe a contar a história de um homem que se transforma em um monstro, mas sim uma história humana. As duas visões do relacionamento tendem a resultar na torcida do espectador, seja para que fiquem felizes separados, e sim, até mesmo juntos.

Meu Rei é um filme que não tenho ressalvas. Elegante e dócil em seus momentos otimistas, mas árduo e doloroso ao retratar a desconstrução realista de um casamento, o filme funciona perfeitamente. Há uma sensibilidade em mostrar ao espectador alguns limites do comportamento humano em conjunto e a necessidade de fugir do fracasso. O cinema francês mais uma vez nos presenteia com um filme brilhante.

HOLANDÊSVOADOR

Embarcando no cinema

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