Crítica | Águas Rasas
Em 1975, um Steven Spielberg ainda no início de sua longa e brilhante carreira revolucionou o gênero de horror apresentando um filme com um perigo realista que poderia acontecer com qualquer um. 'Tubarão' virou um fenômeno rapidamente causando o medo de entrar na água. E o pior: lançado durante o verão.
Uma escola foi criada com sequências absolutamente mais fracas e filmes que se inspiraram que não chegaram perto do sucesso de Spielberg. O gênero tubarão acabou se emancipando do terror e, nos últimos anos, tornando-se praticamente um sinônimo do cinema trash com clássicos como Sharknado e Megalodon. Agora, em 2016, o criativo diretor Jaume Collet-Serra revigora a reputação do gênero arriscando de forma precisa e objetiva no suspense.
Procurando se reencontrar em sua vida após a perda de um ente querido da família, a médica Nancy (Blake Lively) viaja para surfar em uma praia paradisíaca que teve forte significado para sua mãe e irmã. Com poucos surfistas nas redondezas, a jovem é atacada por um enorme tubarão e se vê presa e ferida em uma pedra isolada.
A criatividade de Serra se evidencia pela escolha de unir o suspense clássico em filmes de tubarão com o segmento da atmosfera subestimada de longas que se concentram em basicamente um único local. Ao mesmo tempo em que opta por uma narrativa que se distancia do clima de terror de Spielberg, o diretor espanhol é eficaz ao sustentar sua obra de forma autoral não se comparando a marcos do tipo 'que se passa em um lugar' como: '127 Horas' e o competente 'Enterrado Vivo' - este que leva o gênero ao extremo se passando apenas dentro de um caixão enterrado. 'Águas Rasas' se beneficia por ser contido em tal aspecto e, principalmente, abusando da bela paisagem paradisíaca da praia em planos altamente panorâmicos. Deste modo, o filme é bem sucedido em não fazer sentir que se passa ao redor de um único evento por 90 minutos. E claro, desta vez a protagonista não está sozinha, mas muito mal acompanhada.
Blake Lively nos ganha esbanjando carisma logo em suas primeiras cenas a caminho da praia, com humor e insegurança ao tentar falar espanhol com o motorista. Uma cena sutil e muito bem executada tanto do ponto de vista de atuação e química, quanto do ponto de vista de direção, que pode passar despercebida. A humanidade da personagem central é essencial para a narrativa por causar empatia com o público. É inteiramente necessário que torçamos para que Nancy saia com vida de sua enrascada. E a torcida acontece. A atuação física de Lively com pequenos gestos comprovando sua experiência com a prancha e o esporte (o modo como "acaricia" a água enquanto espera por ondas, por exemplo). Ainda mais importante é como a atriz guia o suspense criado por suas ações e reações diante do predador. Uma trilha sonora tensa e jogo de câmera de ação não seriam suficiente para causar o medo aliado a empatia sem a eficiência de Lively. É curioso também como Serra faz um belo estudo de personagem explorando o fato da médica estar desacreditada com sua profissão pois não conseguiram salvar seu ente querido. O argumento fica mais claro do que devia, chegando a ser óbvio, através de diálogos, mas não prejudica a boa sacada do diretor. Por ironias do destino, a mesma se vê obrigada a fazer seus curativos com o que tinha em mãos
E a protagonista consegue ser tão importante quanto seu antagonista. Digo isso pelo fato do tubarão ser um ser magnifico do ponto de vista visual. Tal efeito especial rouba a atenção inteiramente para si quando está em cena. Quanto mais ele aparece, mais gostamos. A narrativa não se torna preguiçosa justamente pelo ótimo cuidado que foi dado no desenvolvimento de Nancy.
Como citei brevemente antes, há um interessante jogo de câmera em suas principais cenas de suspense. Mais uma vez sendo obrigado a citar o clássico de 1975, Serra faz uma belíssima homenagem ao apresentar o ponto de vista do tubarão antes mesmo de aparecer em cena. Planos em primeira pessoa vigiando a protagonista de baixo para cima remetem instantaneamente a obra de Spielberg sem parecer imitação barata. Serrra não abusa do artifício e ainda nos engana em certos momentos. Além disso, o diretor inova no gênero do predador aquático ao criar a ilusão de breves planos sequência durante o ataque submerso levando Nancy a chocar-se com pedras sem saber o que a estava perseguindo. Nestas cenas o espectador também não vê o tubarão. Pontos de vista?
A fotografia de Flavio Martínez (já acostumado a trabalhar com Serra) auxilia as sensações em dois pontos da trama. Do começo até o final do segundo ato, apresenta uma direção de fotografia tropical com paletas quentes evidenciando tons amarelados em função da segurança quando está em terra e se embriagando em tons azuis ao entrar no mar, ficando subentendido os momentos de reflexão de Nancy, ela fica mais serena e passional em relação a seus sentimentos e a paleta de cores contribui ao passar isso (não se deve esperar que haja uma fera faminta por lá). Ao longo do terceiro ato, a mudança de temperatura é repentina e brusca, arriscando em um tom pessimista e de isolamento para auxiliar no tenso confronto final. A fotografia anuncia preocupação e suspense para um desfecho de tirar o fôlego. Um tipo de linguagem previsível que se encaixa perfeitamente na narrativa.
Se por um lado o filme acerta em aprofundar o confronto Homem x natureza nunca deixando a narrativa genérica (um erro que acontece excessivamente em Hollywood), ele acaba falhando no desenvolvimento do arco dramático de Nancy tornando, este sim, superficial. Por mais interessante que tenha sido o detalhe da falta de esperança da protagonista em sua profissão e, ainda mais importante, o mecanismo utilizado para justificar seu conhecimento em fazer curativos (isto sim, crucial), o arco familiar não soa essencial para o filme. Um ser humano não precisa de motivações complexas para querer manter-se vivo. O filme continuaria funcionando sem este arco. Assim como a incompreensível necessidade da cena de abertura, que praticamente entrega um momento crucial da história.